Baseado na revisão de 14 mil artigos científicos, o Resumo para Formuladores de Políticas (SPM) do Sexto Ciclo de Avaliação (AR6) é contundente ao mostrar a impressão digital dos humanos no aquecimento global; cientistas sentenciam que a hora de agir tem de ser agora
As mudanças climáticas já estão acontecendo aqui, agora, no nosso quintal. O problema é urgente e grave; parte dele é irreversível; ainda dá tempo de agir, mas precisa ser agora, o que exige ação imediata, global, coordenada e contumaz rumo à redução de emissões dos gases de efeito estufa e à transição para a sociedade de baixo carbono. Historicamente, esse é o recado mais enfático do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima), criado em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, e tradicionalmente conservador em suas análises. Trata-se de um comitê composto por centenas de cientistas de todo o mundo. O 6º Relatório de Avaliação foi aprovado na 54ª sessão do IPCC e é intitulado “Climate Change 2021: the Physical Science Basis”. O documento foi elaborado pelo Grupo de Trabalho I (AR6-WGI) e ganhou ampla repercussão mundial após o lançamento, no último dia 9 de agosto.
O estudo coloca uma pá de cal nos argumentos dos negacionistas, que por décadas tentaram confundir a opinião pública e desacreditar a correlação entre a ação humana e o aquecimento da temperatura média do planeta. Esse documento, assinado por 234 autores de 66 países e aprovado em consenso por 195 nações, foi elaborado com base na revisão de 14 mil artigos científicos e representa o estado da arte da ciência do clima. Ele comprova, cientificamente, que o aquecimento global é, em sua ampla maioria, provocado pela ação humana.
Cientistas que assinam o texto acendem o sinal vermelho e apontam que já passou da hora de começar a agir para evitar impactos ainda mais severos nas diferentes formas de vida e na saúde humana, alterando o clima como conhecemos. “Nenhuma região do planeta inteiro vai ficar incólume à questão climática”, alertou o pesquisador Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, um dos autores brasileiros do Relatório.
O AR6 é marcado pela diminuição das incertezas, na comparação com os relatórios anteriores, e passa a atribuir alguns eventos climáticos extremos – principalmente os associados à temperatura, como as ondas de calor que assolaram o Hemisfério Norte nos últimos meses – ao aquecimento oriundo da ação humana. Os eventos extremos – chuvas e secas intensas, ciclones, furacões, incêndios florestais, ondas de calor e de frio, entre outros – vão aumentar em frequência e intensidade. A mensagem é clara: cada fração de um grau importa. “Estamos 20 anos atrasados nas políticas públicas para reduzir emissões. Temos de reduzi-las já, limitar o aquecimento em 1,5 grau Celsius e agir imediatamente. Mas não são os cientistas que fazem políticas públicas”, afirmou Artaxo, reiterando o que revela o estudo – que o homem tem aquecido o planeta a uma taxa sem precedentes nos últimos 2.000.
“As informações do relatório são muito fortes. Esperamos que as reações a elas sejam à altura, e que a ciência possa ajudar governos na tomada de decisão bem-informada”, ressaltou Thelma Krug, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e vice-presidente do IPCC, durante evento virtual de lançamento do AR6 no Brasil, realizado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Thelma refere-se às discussões para a revisão de metas de reduções das emissões dos países – as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas, ou NDCs, na sigla em inglês – e sobre a definição das regras para a implementação do Acordo de Paris. Espera-se que esses temas sejam endereçados durante a 26ª Conferência das Partes da ONU para o Clima (COP26), marcada para ocorrer entre os dias 31 de outubro e 12 de novembro de 2021 em Glasgow, na Escócia.
Mais rápido do que se pensava
Com o refinamento e a sofisticação dos modelos e das projeções, é possível identificar que, em qualquer dos cenários, mesmo no mais otimista, o aumento da temperatura média de 1,5 grau Celsius será atingido, senão superado, em, no máximo, 20 anos. Esse aumento refere-se à comparação da temperatura média no início do período pré-industrial). Se não forem adotadas medidas urgentes e drásticas para frear a queima de combustíveis fósseis e as emissões de gases de efeito estufa, alertam os autores, os 2 graus Celsius, em média, serão alcançados já em 2050. Até agora, já sofremos um aumento médio de 1,1 grau C desde os anos 1800. Se continuarmos com os mesmos padrões de emissões da atualidade, alcançaremos 4,4 graus Celsius de aumento de temperatura média até o final deste século.
Por não ser um aquecimento homogêneo, as regiões continentais sofrerão mais. Nas projeções regionalizadas, já é possível identificar que o Brasil Central e o leste da Amazônia terão uma redução de 20% nas precipitações médias. “Essas mudanças não têm precedentes há pelo menos dois mil anos. De acordo com alguns cenários, a temperatura poderá ficar de 5 a 5,5 graus Celsius acima da média”, afirma Artaxo.
Atlas Interativo fatia regiões e detalha a crise
Uma novidade do 6º Relatório do IPCC refere-se ao Atlas Interativo, que permite não apenas aos representantes de governos tomarem decisões baseadas em projeções e dados científicos regionalizados para ações de adaptação e mitigação, mas também à sociedade em geral melhor compreender as diferentes variáveis e os impactos das mudanças climáticas em diferentes partes da América do Sul e do mundo. Os dados do Atlas foram todos extraídos do Relatório e regionalizados em 51 diferentes regiões espalhadas pelo globo, o que permite compreender possíveis impactos locais diante dos diferentes cenários apresentados pelo IPCC. O Atlas mostra, por exemplo, que haverá maior intensidade de chuvas na bacia do rio Uruguai, enquanto o Nordeste brasileiro sofrerá com secas prolongadas, como explicou Lincoln Alves, do INPE. O Atlas pode ser acessado pelo link https://interactive-atlas.ipcc.ch/.
Vem mais por aí
O Relatório AR6-WGI, lançado em agosto, foi o primeiro de três que vão compor o 6º Relatório do IPCC e embasar as decisões sobre os próximos passos das negociações climáticas. Ele tratou especificamente das causas do aquecimento global. O segundo, que está sendo elaborado por pesquisadores do Grupo II (WG2), será sobre adaptação e vulnerabilidade (as consequências) e deverá ser lançado em janeiro de 2022. O terceiro e último da série, por sua vez, produzido pelo Grupo III (WG3), será específico sobre mitigação das mudanças climáticas (endereçando possíveis soluções identificadas pela literatura revista) e vai ser lançado em março, segundo Thelma Krug. A versão em inglês do relatório do IPCC pode ser acessada diretamente no link https://www.ipcc.ch/.
Texto: Daniela Vianna
Crédito da imagem: Mika Baumeinster/Unsplash