No último ano, foram registradas 800 mortes por desastres naturais no Brasil, segundo levantamento da Associação de Pesquisa Iyaleta. As populações periféricas no campo e nas cidades, principalmente compostas por pessoas negras, de baixa renda, habitantes das periferias, especialmente mães de família e crianças, são as mais afetadas pela crise climática. A gestão urbana torna-se fundamental para evitar novas tragédias.
Por Daniela Vianna e Renata Rodriguez, ClimaInfo
O painel “Ambições e Desafios para a Adaptação”, realizado no Brazil Climate Action Hub na última sexta-feira, 11 de novembro, e organizado por um grupo de organizações (lista abaixo), foi dividido em duas mesas de debates acerca da adaptação à crise climática e de seus mecanismos de financiamento. Esse é um tema central da agenda da Conferência do Clima das Nações Unidas deste ano (COP27), no Egito. No âmbito geral da COP, o debate envolve, principalmente, os percentuais dos recursos do financiamento climático que serão destinados à mitigação e à adaptação da crise climática.
Na primeira mesa, “Políticas de Adaptação e Cidades”, o geógrafo Diosmar Filho, pesquisador da Associação de Pesquisa Iyaleta, apresentou os dados do estudo “Sumário: Estratégias para planos nacionais de adaptação no caso Brasil”, sobre desigualdades e mudanças climáticas em áreas urbanas na região da Amazônia Legal. O estudo, elaborado em parceria com o Instituto Clima e Sociedade (iCS), envolve transferência de conhecimento em pesquisas sobre saúde e ordenamento territorial, e tem como desafio o mergulho em dados sobre as desigualdades urbanas na região Norte e Nordeste do Brasil. O estudo aponta para a necessidade de revisão do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, com a criação de metas que considerem as realidades de cidades no que tange ao desmatamento, aos efeitos do aquecimento superficial urbano, às condições sanitárias e de saúde, ao objetivo de desigualdade zero e aos desastres climáticos que já afetam – e vão ser agravados em intensidade e frequência – nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
“Entre 2015 e 2021, de acordo com a política de negação implantada no Brasil, percebemos o aumento de dados do Rio Grande do Norte de 145 a 4.775 pessoas que morreram e estão sendo afetadas por desastres naturais”, apontou Diosmar, dizendo que “em Porto Velho, por exemplo, estão vivendo o aquecimento superficial. Já nos estados de Pernambuco, Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte, tivemos o aumento de chuvas”. Segundo ele, é urgente que os Estatutos das Cidades voltem a ser um Estatutos para a cidades. “Hoje é um instrumento de gentrificação, com aumento das desigualdades enquanto tentamos criar mecanismos de resiliência. Temos, por exemplo, de debater temas costeiros, de bacias hidrográficas urbanas”.
Daniela Costa, gerente de Clima e Justiça do Greenpeace Brasil, disse que a organização, por reconhecer a urgência da crise climática no Brasil e no mundo, lançou uma campanha focada em eventos extremos e adaptação, identificando áreas de vulnerabilidade e investindo na pressão pública. A ciência e a realidade mostram que mitigar não é mais suficiente, é preciso adaptar. A iniciativa trabalha com jovens periféricos de centros urbanos para que sejam agentes da mudança, fazendo monitoramento e a identificação de problemas e soluções nos territórios e colocando pressão no poder público.
“Essa COP no Egito é única, porque nos faz refletir que nem sempre os mais impactados contribuíram para a crise climática”, disse ela. “No Brasil, com os maiores índices de desigualdades do mundo, nem todos estão no mesmo barco. A maior parte da população não tem acesso a salva-vidas e geralmente as classes mais oprimidas e marginalizadas da população brasileira estão sofrendo mais com os eventos climáticos extremos. Existe um descaso com a vida”, ressaltou, apontando que as cidades estão à frente dessa crise que afeta principalmente as periferias.
Mencionando pesquisa recente do Instituto Pólis, Daniela advertiu que os mais expostos a eventos extremos no Brasil são pessoas negras, de baixa renda, que habitam regiões periféricas e, em especial, mães de família. “As próprias cidades têm suas desigualdades. A cidade de São Paulo, por exemplo, que registra 37% de população negra em seu território, vê esse número crescer para 55% nas ocupações em áreas de risco e nas periferias”, exemplificou. “A distribuição dos impactos é sentida de maneira desproporcional, então, não podemos falar de adaptação sem falar da justiça climática”, afirmou.
Com foco na solução, ela apontou algumas estratégias. Primeiro, a necessidade de inclusão das pessoas mais impactadas para o centro da ação climática, com práticas e políticas de desenvolvimento que envolvam o conhecimento dos povos tradicionais e periféricos sobre a relação das pessoas com os seus respectivos territórios.
O segundo ponto é ligado às Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, que são o compromisso de redução das emissões de gases de efeito estufa assumido pelo Brasil na ONU) e a revisão dos planos nacionais de adaptação, com incorporação da justiça climática como eixo norteador e com sistemas de monitoramento com participação popular.
Por fim, ela exaltou o ponto é o financiamento. “Estamos lutando para que os países desenvolvidos implementem o compromisso que foi assumido de colocar 100 bilhões (de dólares) ao ano aos países em desenvolvimento. Vemos que só 22% desses recursos foram para adaptação e que 72%, entre 2016 e 2020, chegaram na forma de empréstimos, o que não é eficaz para garantir a justiça climática. Queremos que o financiamento siga metas e objetivos de longo prazo para que tenha progresso”, cobrou Daniela.
André Rocha, da Fundação Grupo Boticário, contou que a organização está investindo em soluções baseadas na natureza para ajudar tanto em ações de mitigação quanto de adaptação às mudanças climáticas. Entre as ações estão a gestão de duas reservas privadas que estocam carbono e biodiversidade dentro dos seus limites e contribuem com resiliência regional; o engajamento da sociedade, por meio de campanhas e comunicação sobre conservação, oceanos e turismo em áreas naturais; e o financiamento de cases e soluções para adaptação na região costeira e trabalhado com a cultura oceânica. “A Fundação propõe soluções baseadas na natureza como uma forma de incentivar o uso da infraestrutura natural, como parques lineares, proteção dos mananciais das cidades, visando conservar os recursos hídricos e manter a resiliência e qualidade de vida das cidades, evitando que a população esteja exposta a esses eventos climáticos extremos, que estão matando pessoas e dilapidando patrimonios publicos”, afirmou Rocha.
Sistemas Alimentares, Fome e Sindemia
Na segunda mesa de debates, “Estratégias e adaptações para a urgente transição desses temas alimentares”, foi abordado o desafio global envolvendo os sistemas alimentares frente à crise climática. A professora Aline Carvalho, coordenadora do projeto Sustentarea, pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo ressaltou a importância de “um olhar sistêmico para esse modelo de produção e consumo para enfrentarmos essa crise climática e social de maneira coordenada”. Segundo ela, sistemas alimentares vão muito além de cadeia de produção de alimentos, mas envolvem todos os atores e conexões entre pessoas e instituções e estão ligados aos impactos na saúde das pessoas e do planeta. Ela mostrou, com dados, as desigualdades envolvendo a produção de alimentos no Brasil – o maior exportador de soja e o terceiro maior exportador de milho do mundo –, e apontou como essa forma de produção de commodities consome muitos recursos naturais. Em 2021, 64% da soja produzida no país foi exportada, principalmente como insumo para ração animal. Apresentou, ainda, um estudo, realizado em parceria com o WWF, sobre o índice multidimensional de sistemas alimentares sustentáveis brasileiros, onde foram utilizados 46 indicadores nas dimensões ambiental, econômica, nutricional e social. A partir desses indicadores, os estados brasileiros foram classificados em “4 Brasis”. Na região Centro-Oeste, concentram-se os estados que utilizam o agronegócio e que possuem impactos ambientais da produção de alimentos mais importante do que o restante do país. Nas regiões Sudeste e Sul, os problemas envolvendo o uso de agrotóxicos e a intoxicação por pesticidas é muito mais alto. Na região Nordeste, os maiores problemas envolvem a dupla carga de má nutrição; e, na região Norte, existe uma crescente insegurança alimentar. “Percebemos uma relação inversa entre a dimensão econômica e ambiental, ou seja, quanto maior o desenvolvimento econômico desses estados, menor é a pontuação ambiental”, alertou, ressaltando a importância da agricultura familiar para a produção de alimentos locais, para o consumo local e para a segurança alimentar do nosso país. “Temos de buscar apontar alguns caminhos para que haja a relação de ganha-ganha ou redução de perdas, para enfrentarmos esses desafios de maneira eficaz.
Letícia Turim, integrante do grupo Carta de Belém, falou da importância de se falar em agriculturas, dada a diversidade de práticas, modos de vida e impactos. “Alimento não é commodity, estamos falando de direitos humanos. O direito à alimentação saudável e adequada está prevista na nossa Constituição”, lembrou. Ela ressaltou a importância de se pensar no papel do agronegócio na produção da fome e das mudanças climáticas. “Historicamente, a violência, a fome, a destruição ambiental estão intrinsecamente relacionadas às cadeias de produção de commodities agropecuárias, porque estão sob um modelo de concentração fundiária, de renda, de produtos, é um modelo avesso à diversidade”, destacou. Letícia apontou, ainda, para o uso intensivo de máquinas e agrotóxicos – existem hoje 1.970 agrotóxicos liberados no Brasil.
Isabela Borga, coordenadora administrativa do Fundo Agroecológico (FUA) falou sobre as ações do fundo, baseadas em um estudo sobre como está o acesso à terra pelos agricultores brasileiros, realizado, em 2019, na região Sul de São Paulo – área com fragmentos de Mata Atlântica. O estudo apontou problemas de acesso à terra, dentre os quais disputas por terras agricultáveis, vulnerabilidade por troca de lideranças, entre outros. O fundo arrecada recursos para a compra de terras, em áreas de mananciais, e a proteção das mesmas da especulação imobiliária e do loteamento. Foram criados subprojetos a partir do fundo, como o que envolve o grupo de consumo, que mantém os agricultores vendendo os seus produtos até que consigam comprar a primeira terra, o emergencial de fome, arrecadando R$ 40 mil para comprar alimentos agroecológicos, e o projeto da Fundação Getúlio Vargas – Cinturão+Verde – criado com o objetivo de adaptação às mudanças climáticas pela agricultura familiar no cinturão verde de São Paulo.
Por fim, Janine Coutinho, ccoordenadora de programa alimentares e sustentáveis do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), destacou que não é possível dissociar alimentação adequada e o direito da alimentação com a sua sustentabilidade). Ela falou o quanto o agronegócio está adoecendo as populações e o planeta. “O agronegócio segue batendo recordes, mas vivemos em uma população em que todos os dias 33 milhões de pessoas passam fome todos os dias no país.” A representante do IDEC citou um estudo, publicado recentemente, mostrando que 57 mil pessoas morrem por ano, no Brasil, devido a doenças decorrentes do consumo de ultraprocessados – uma pessoa a cada 10 minutos.
Janine citou outro estudo recente, elaborado pela Global Alliance For The Future Of Food, indicando que, em nível global, apesar de 30% das emissões de gases de efeito estufa estarem relacionadas aos sistemas alimentares, somente 3% dos recursos são investidos para a transição desses sistemas para outros mais sustentáveis e justos. “É um ponto de alerta que exige algum tipo de negociação com as NCDs, pois há a necessidade urgente de financiamento para a transição dos sistemas alimentares”. Ela apontou, ainda, a quantidade de agrotóxicos presentes nos produtos ultraprocessados, que estão nas prateleiras dos supermercados. “A saúde pública precisa estar acima dos interesses comerciais”, sentenciou, dizendo que a transição urgente dos sistemas alimentares mais saudáveis e sustentáveis exige articulação entre diferentes atores, ação intersetorial e um olhar sistêmico baseado nos direitos humanos à alimentação adequada. As ações do IDEC estão organizadas em cinco dimensões: negócio (englobando impactos das commodities na soberania alimentar); abastecimento (fome e desigualdade de acesso a alimentos saudáveis); ecológica (interconexões entre segurança alimentar e nutricional com questões de agrotóxicos, presentes, inclusive, nos alimentos ultraprocessados e mudanças climáticas); saúde (principalmente no que tange ao consumo de carne e alternativas como carne de laboratórios, produtos plant-based e inserção de insetos na dieta); e governança (no endereçamento de crises que se sobrepõem, como a da fome e da obesidade, assegurando a institucionalização do sistema de segurança alimentar e nutricional no país.
No evento, foi apresentado também um filme, lançado pelo IDEC, que trata da sindemia global, nome dado à sobreposição de três crises: a da fome, a da obesidade e a das mudanças climáticas. Nos últimos anos, essas crises foram agravadas ainda mais pela pandemia da COVID-19. “Estamos falando de um dos maiores desafios da sociedade e do meio ambiente, e a solução passa pela transição dos sistemas alimentares – a maneira que os alimentos são produzidos, distribuídos, ofertados, comercializados e consumidos”, concluiu.
Grupo de organizações envolvidas na realização do Painel:
– Associação de Pesquisa Iyaleta
– Greenpeace Brasil
– C40
– Fundação Grupo Boticário
– GT Clima e Oceano do Observatório do Clima
– Fundo Agroecológico (FUA)
– WWF-Brasil
– Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
– Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC)
– Grupo Carta de Belém
– Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase)
– Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
A íntegra dos dois painéis está disponível neste link.
Todos os eventos foram gravados e estão disponíveis em português e ingles no website do Brazil Climate Hub.
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